Quero começar dizendo que eu não sou tão amargo quanto posso soar nesse texto. Sou, na verdade, uma pessoa bem alto-astral e otimista na maior parte do tempo — excetuando-se, é claro, naquelas ocasiões em que a ansiedade bate forte e preciso parar o carro pra vomitar no meio-fio. Mas calma, foi só uma vez.
E apesar do meu estilo casual e na paz — quando eu era adolescente, muita gente me dizia que não conseguia me imaginar bravo —, tem uma parte aqui dentro, como em qualquer pessoa, que parece um forno embutido sem ventilação apropriada. No meu interior não costumo fazer muita coisa no forno, ao contrário do exterior (estou tentado a comprar um forno cheio das funcionalidades para a cozinha nova que ainda não saiu do papel). Mas às vezes eu percebo o forno pré-aquecendo e, mesmo que a contragosto, de vez em quando eu boto alguma coisa lá dentro.
Há algumas semanas fui à FLIPomerode, o Festival Literário Internacional de Pomerode, em Santa Catarina. Foi um sábado especialmente agradável, que contou com debates bem interessantes sobre poesia e romances regado à chuva que decidiu cair depois que tudo terminou e uma volta de carro em que ouvimos o show do NX Zero no Rock in Rio. O principal motivo para eu ter ido, se vou ser realmente sincero, foi para ouvir e pegar o autógrafo da Aline Bei, cujo Pequena Coreografia do Adeus me surpreendeu ao cativar com seu estilo único. Naturalmente ela não era a única pessoa interessante no Festival, mas foi na longa fila para conseguir o autógrafo dela que me encontrei após o debate.
A fila era realmente longa e andava em um ritmo muito lento. Parado de braços cruzados com a mochila pesada às costas e minha esposa de barriga roncando de fome ao lado, olhei para a quantidade de pessoas à espera e senti que havia alguma coisa dentro do forno: inveja.
No debate, a Aline falou sobre o processo longo que a levou a ser publicada e como foram necessárias muitas etapas. Ela disse que não foi fácil encontrar uma editora disposta a apostar em alguém que escrevia em um estilo tão específico, e que foi preciso vencer um prêmio para conseguir romper a bolha do mercado editorial e avançar como escritora. Eu tenho certeza de que ela teria muito mais a dizer sobre sua carreira e todos os nãos e decepções pelos quais passou, mas quem vê de fora só vê o sucesso. E a inveja dentro de mim naturalmente ignorava a paciência, o trabalho constante, os obstáculos no caminho para chegar onde ela chegou. A minha inveja pelo sucesso dela não queria nuances. Ela só queria que a fila para autógrafos fosse para mim.
A FLIPomerode aconteceu na mesma época que a Bienal do Livro de São Paulo, na qual — segundo vi no Instagram da vida — muita gente que escreve literatura nacional figurou na programação, recebeu lugar de destaque nos estandes e esteve presente nas listas de mais vendidos das editoras. A cada novo post que comemorava o sucesso de vendas o forno aumentava um grau, e foram muitos posts.
Eu fiquei quieto, é claro. Eu jamais iria querer ser visto como aquela pessoa amarga e recalcada que não consegue ver o sucesso dos outros sem pensar no insucesso próprio. Quando o influencer de livros Tiago Valente anunciou a publicação do seu livro, Espresso Fantasma, pela Galera Record, aparentemente muita gente apareceu para criticar sua conquista porque “só estava sendo publicado por ser influencer”. E todas essas pessoas que por alguma razão deram voz ao rancor foram incapazes de perceber que ele obviamente não veio do nada. Eu não conheço a trajetória dele, mas alguém com o alcance que ele tem agora não começou onde está agora. Como no caso da Aline, eu tenho certeza de que houve muito trabalho envolvido.
Mas é por isso que tanta gente sempre diz que não devemos nos comparar com os outros, mas com nós mesmos — e faz todo sentido! Cada um de nós tem uma trajetória muito específica, uma vivência muito única. De que maneira eu iria me comparar com a Aline Bei, quando o meu estilo de escrita é diametralmente oposto ao dela? Como eu iria me comparar com o Tiago, quando só comecei a aparecer na internet há um ano? As coisas não acontecem em um passe de mágica (infelizmente).
E é claro que esse texto não é sobre a Aline, o Tiago ou qualquer dos autores que alcançaram seus próprios patamares de sucesso na Bienal vendendo livros e transformando a percepção de quem lê sobre o que é literatura brasileira (precisamos muito disso!). É sobre como, mesmo plenamente ciente de todas essas coisas, às vezes somos impotentes em matéria de desligar o forno. E ele fica lá, mal instalado no nicho, soltando fogo pelas ventas sem que o calor tenha para onde ir, fermentando em si mesmo e cada vez mais perto de explodir.
Nesses momentos eu penso em todas as coisas inspiradoras que já li e vi sobre o processo de cada um. Foquei no que a própria Aline disse no debate e no tempo que eu sei ser necessário para amadurecer e conseguirmos encontrar nosso caminho no mercado editorial. Lembrei que nada acontece da noite para o dia e que, a menos que eu queira vomitar no meio-fio de novo, não adianta nada alimentar a minha ansiedade me comparando com o sucesso dos outros.
Respirei fundo e aguardei até a minha hora de pegar o autógrafo. A Aline é um doce de pessoa, assinou o livro, tirou foto comigo e sorriu para todo mundo que estava esperando com suas obras em mãos. Ela obviamente merece a aclamação que recebe hoje e espero muito poder conversar mais com ela em algum outro momento, de preferência sem a pressão da fila de autógrafos atrás de mim.
Não adianta. Desse forno dentro de mim não vai sair nada bom, ao contrário do que o que temos na cozinha.
É quase inacreditável o fato de que não estou me sentindo nem um pouco ansioso com a iminente Flip, à qual vou pela primeira vez agora em outubro! Em outros momentos, eu estaria hiperventilando, mas agora só me sinto empolgado. Quem sabe isso signifique que estou trocando a receita?
Acredito que escritores sentem inveja mesmo. Ninguém se lembra que somos humanos comuns, feitos da mesma natureza que o cara da academia, sempre inconformado com o físico perfeito do fisiculturista. A questão é o que fazemos com esse sentimento. Ele pode nos impulsionar ou nos enfiar debaixo da terra. Me enfiei em um buraco fundo após ler "Cem anos de solidão". Parei de escrever por anos. Só agora vejo a grande besteira que cometi só porque fiquei enciumada por não ter escrito aquele livro. Resumindo: demorou 20 anos pra eu me tocar de que eu não sou colombiana, tampouco Gabriel Garcia Marques. E agora estou firme na escrita sendo eu mesma. O sentimento que eu tenho agora é um misto de medo com "vou ser escritora sim, caramba". Não me comparo mais, ainda assim não é fácil. Acompanho outros escritores com foco na aprendizagem, mas queria sim pular etapas, acordar publicada e dando autógrafos.
A Aline é realmente uma escritora maravilhosa. Acompanhei uma fala dela na Flip e fiquei ainda mais encantada com a sensibilidade dela. A questão, pra mim, com relação a ela e a todos os outros autores, é insistir (antes de tudo) insistir em achar a sua forma de escrever. Porque o estilo da Aline é absolutamente inimitável. E, embora ela fale de questões já debatidas por outros, ela o faz de maneira única, a maneira dela.
Penso que isso seja mais importante do que ser notado pelo mercado editorial. Achar o lugar da nossa escrita dentro de nós. Sabe aquela sensação de ser tão você tão você que as pessoas passam a reconhecer o seu conteúdo como O seu conteúdo?
Para mim, sucesso é isso.