Foi com grande desprazer que notei a aparição de um novo ícone no Word. Se fosse um ícone singelo, escondidinho no seu canto, eu não me incomodaria tanto. Mas uma breve pesquisa na internet provou que não sou só eu que me incomodei.
Estou falando do famigerado Copilot, nome da IA da Microsoft. Mas não vou me limitar a ela especificamente, apesar de ser ela que me fez escrever esse texto.
Se tornou rotina termos de aceitar que agora tudo vem com inteligência artificial, mesmo coisas que não precisavam, ou deveriam. Em alguns casos até faz sentido. Em outros, não. Talvez o fundo do poço tenha sido o momento em que, na semana passada, parei com o carrinho do supermercado na longa fila para o caixa em uma quinta-feira ao meio-dia. Entediado enquanto a esposa buscava nozes, cotovelos apoiados na barra usada para guiar o carrinho, passeei com os olhos pelos produtos ao redor e estaquei em um caderno escolar com IA.
O que primeiro chamou minha atenção foi o uso das letras IA no nome da marca: JandaIA. Estremeci, apesar de não ser muito pior do que empresas enormes e consagradas quererem inventar moda ao chamar a sua IA de “Apple Intelligence”, um esforço ridículo de tentar criar algo diferenciado em um mar de mesmice não muito inteligente. Analisei o caderno, tentando entender como a inteligência artificial poderia ser aplicada naquele caso. Não era completamente absurdo, admito; tirando uma foto da página do caderno com o celular, a IA da Jandaia digitaliza a página, aparentemente transcreve em texto editável e, se não me engano, cria resumos. Até faz sentido, apesar de fazer resumos ser a melhor maneira de estudar e a IA tirar até isso do processo.
Se eu já usei a IA? Sim. Lá no comecinho, quando ainda era novidade e eu queria descobrir que tipo de imagem daria para criar com essa ferramenta. Me esforcei pra aprender a usar o Midjourney através do Discord, onde eu nunca tinha botado um dedo. Achei divertido ter resultados imediatos de prompts ridículos como um elefante fumando um cachimbo em cima de uma árvore, ou lendo um livro junto de uma lareira. Também testei criar cenários das minhas histórias e ficou passável. Talvez agora as artes sejam melhores do que em 2019.
Se eu efetivamente usei o que fiz com a IA? Não. Depois que testei vários prompts diferentes, a curiosidade terminou e eu esqueci daquilo por um bom tempo, apesar de acompanhar de canto a efervescência do campo. A coisa cresceu em uma velocidade alarmante, muito mais rápido do que eu imaginava ser possível. E acabou, como eu já disse, se espalhando por todo tipo de produto ou interface, chegando até aos cadernos.
Um de meus trabalhos como freelancer envolve a confecção de newsletters, e o MailChimp passou a se oferecer para reescrever o que eu digitava. Só que eu não estava fazendo nada original, mas colando textos que a editora já me entregava e que certamente faziam sentido para o público dela. O Google começou a criar sumários de respostas para nossas pesquisas e a apresentá-los antes dos resultados efetivos. Sempre, claro, com o apontamento de que a IA pode se enganar e apresentar resultados inverídicos. No Photoshop, remover alguém indesejado de uma imagem e colocar uma rena no lugar se tornou fácil com o preenchimento generativo — embora sejamos encorajados a fazer uma seleção já no formato da rena para obter melhores resultados.
Além disso, dependo de alguns produtos da Microsoft. Meu e-mail pessoal é do Outlook, ainda que o profissional seja do Gmail. A nuvem é o OneDrive. Mantenho um sem-número de anotações de ideias no OneNote. E, como qualquer escritor que aprendeu a escrever no computador nos idos dos anos 2000 em um teclado de teclas altas e amareladas, eu uso o Word.
Sempre achei bacana o quão direto ao ponto o Word é—ra. Sem muitas firulas. A sensação é mais ou menos a mesma que tive ao abrir os softwares de edição de vídeo ou fotos pela primeira vez: É isso? Uma tela em branco, ferramentas alinhadas em um lado ou no topo e a liberdade de fazer o que bem entender a partir dali. A ferramenta sozinha não fazia nada. Era preciso começar por conta própria, e continuar sozinho também.
NÃO MAIS!
Começou na semana passada, talvez no mesmo dia em que vi o caderno com inteligência artificial. Os programas atualizaram no meu computador e, quando fui continuar a escrita do meu livro, lá estava ela.
A IA.
A princípio achei que eu não ia me incomodar. O símbolo do Copilot em si não é feio, apesar de ser totalmente ambíguo e sem sentido evidente. São duas qualquer-coisa girando em torno de si mesmas, provavelmente representando o processo criativo da inteligência artificial em um redemoinho demoníaco. Em cores, esses dois elementos não identificados possuem gradientes espetaculares que passam por todo o espectro visível. Mas na página (que foi onde eu verdadeiramente me ofendi), o símbolo é pequeno e discreto, sem cores, só em contorno, na esquerda, onde abro novos parágrafos.
Não vai me incomodar, pensei. Até é bonitinho. Mas incomoda.
Se ele ficasse lá quietinho, tudo bem. Mas não. Quando abro um novo parágrafo ele está lá. Começo a escrever, ele desaparece. Novo parágrafo e o Copilot surge outra vez. Escrevo um “ai”, some. Seleciono uma palavra, ele retorna.
O que diabos ele quer?
Ele quer reescrever o que eu escrevi. Ele quer dar sugestões. Quer fazer um resumo do que está selecionado. E, agora que eu decidi escrever esse texto xingando ele e decidi testar só para compartilhar o resultado, o maldito não quer mais. Ontem me irritei e pesquisei na internet “Como matar o Copilot no Word” e segui as orientações dos especialistas. Depois disso, como o Pingu no meme, o Copilot cruzou os braços e decidiu que “agora eu não faço mais”.
Muito bem.
Ele deu as caras no Outlook também. Não foi o bastante eu mesmo ler o triste e-mail em que a Companhia das Letras recusou meu original enviado em setembro de 2023: o Copilot leu também, e não só, quis fazer um resumo. Você acha mesmo que eu preciso que resuma isso, meu querido? As palavras, pretas no branco da tela, não são claras e dolorosas o suficiente?
Cliquei para gerar o resumo. Na mesma quantidade de palavras que o e-mail original, mas em inglês, o Copilot me comunicou que meu original foi recusado. Doeu outra vez.

No Reddit, onde vou toda vez que tenho uma dúvida informática (e curiosamente lá sempre tem as respostas), havia uma discussão acalorada sobre a presença do Copilot no Word. Não era só eu que estava de cara com ele. Por sinal, tinha gente muito mais irritada do que eu. Um comentário em específico me chamou a atenção pelo seu teor e conteúdo e ressoou comigo. Talvez seja por ele que eu tenha decidido escrever isso.

Nele, a pessoa em questão (Equilavent-Debt5492, com o avatar verde) diz que sente que a presença do Copilot no Word aproxima a escrita dela da IA, e que isso seria incômodo. Ok, adaptei um pouco o que a pessoa falou. Acho que é o que eu sinto. Não é em si a presença do ícone no ladinho da página que me desgraça a cabeça. É o que ela estar ali significa.
A qualquer momento estou a um clique de distância de ter uma versão otimizada do que acabei de escrever. Uma versão um pouco mais genérica, um pouco mais ampla, tirada sabe-se lá de que recanto da internet, roubada dos parágrafos de algum outro escritor, capaz de agradar ao palato do consumidor comum e médio. E uma versão bem menos eu. Talvez melhor. Mas não uma versão minha.
Me dá asco pensar em ser associado à inteligência artificial de qualquer maneira que seja. Não queria falar isso nesses termos, parece mais pesado do que é, ainda mais porque já tive de trabalhar com essa ferramenta e ela nem sempre é nefasta, nem sempre é ruim, nem sempre é mal utilizada. Mas eu sei como ela funciona, eu sei como as pessoas as usam, sei o fim que as corporações querem dela. É uma tecnologia que por si só parece ótima, mas que não traz grandes benefícios em todos os casos. Como dito naquela imagem que se tornou famosa, não quero que a IA faça minha arte para que eu possa lavar os pratos na pia. Quero eu mesmo escrever meus textos ruins, com vírgulas fora do lugar, com frases excessivamente longas, tendo de cortar depois os travessões e ponto e vírgulas que tenho vício em usar. Não preciso, não quero que a IA me diga como escrever, ou que escreva no meu lugar. Só quero escrever as minhas palavras na minha existência ínfima como escritor sem ter qualquer conexão com ela. Mas pouco a pouco ela se infiltra em tudo.

Por enquanto a IA está no canto da página. Por quanto tempo?
Muitas vezes na vida eu fui dramático sem necessidade e eu sei que tenho mania de fazer isso. Nesse caso, não sinto que é drama. Quem sabe seja hora de comprar uma nova fita de tinta para a máquina de escrever.
Nossa, notei esse ícone antes do parágrafo ontem, enquanto escrevia um novo capítulo. Não entendi, achei o design moderninho e segui escrevendo. Estou com medo de abrir o Word agora e ficar com raiva haha mas ótimas observações sobre o assunto, tô com vc.
Muito bom, Fabio!!! Eu tenho alguns takes sobre isso, inteligência artificial e escrita, acho que você me inspirou a finalmente escrever