O melhor dia da minha vida é 12 de novembro.
Esqueçamos por um momento do fato de que me casei em 12 de novembro de 2022 — foi lindo, sob uma gigantesca figueira; um vento bateu enquanto eu proclamava meus votos e fez choverem sobre as nossas cabeças um tempestade de folhas como que em câmera lenta; teve gente que disse que o momento foi transcendental — e foquemos no dia 12 de novembro de 2021.
Naquele ano, minha agora esposa se preparava para sair com as amigas enquanto eu lavava a louça, tendo assumido a heróica tarefa de limpar a casa sozinho na sexta-feira à noite (por algum motivo que já não me lembro). Às voltas do detergente, da esponja e da espuma, ouvi o celular tocar e sequei as mãos para atender o editor da AVEC Editora, pela qual saíra meu livro no ano anterior. Ele nunca me ligava.
“Parabéns!”, disse ele, ao que fiquei calado por alguns instantes, tentando absorver a informação e conectar com algum outro dado obscuro que justificasse a congratulação, mas eu não achava ter feito nada que merecesse ser parabenizado. “Por quê?”, “Você ganhou o Prêmio Biblioteca Nacional!”.
Tremi na base. Não de um jeito ruim, é claro; de um jeito bom, de um jeito maravilhoso no qual eu poderia ter cedido de alegria e caído no chão, desmaiado de emoção, a visão preta e um sorriso no rosto enquanto o Artur Vecchi tentava me acordar pelo telefone, do outro lado. A verdade é que nunca desmaiei na vida, nem naquele momento. Trocamos mais algumas palavras e, depois de desligar, fui à internet para ter certeza de que não era uma piadinha de mau gosto. Não era.
Ex Libris, que teve metade de suas páginas escritas displicentemente na hora inteira que eu chegava mais cedo do que meus colegas no estágio no Grupo LeYa, tinha vencido o Prêmio Glória Pondé de Literatura Juvenil da Biblioteca Nacional. Larguei a louça pela metade e fui correndo até a minha noiva, e com a notícia ficamos abraçados por uns cinco minutos, rindo como bobos, sem acreditar — até porque a conquista é, de certa forma, também dela, já que ela sempre foi a melhor ouvinte das minhas histórias e é excelente com pitacos.
Nos dias seguintes, me maravilhei com o fato de a conquista ter figurado em grandes jornais, corri para o tabelionato para autenticar documentos e fiquei ansioso pela chegada do prêmio em dinheiro — que, como não é difícil deduzir, foi usado em grande parte no pagamento do casamento do ano posterior.
Depois disso… deixei morrer.
Como se fala de um prêmio vencido sem soar prepotente? Como inserir uma coisa dessas em uma conversa, ou como insistir nesse assunto a cada lançamento sem exagerar na dose? Eu me perguntava se fazia sentido acrescentar “Vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional” a cada vez que meu nome aparecesse em uma capa — decidi que sim, mas com a fonte pequena.
O Artur disse para eu curtir o prêmio, que eu podia descansar um pouco. Talvez eu tenha descansado demais. Postei um pouquinho a respeito, sempre receoso de que pudesse estar estafando meu público com essa história, divulguei aqui, ali, usei um pouco do prêmio para fazer algumas parcerias pagas. E aí a coisa foi esfriando, como era de se esperar, e eu não fiz nada para impedir isso de acontecer. Publiquei um conto no final daquele ano e nada mais. Não tentei surfar na onda do prêmio, usar a grande conquista como uma alavanca para me alçar a algum outro patamar do mercado editorial. Depois dos primeiros dois meses, era como se eu nem tivesse vencido.
Eu me culpo por isso. Não, eu não sei exatamente o que queria ter feito diferente, mas sei que deveria ter feito algo diferente. O que sei é que não deveria ter deixado a coisa passar assim tão fácil, despercebida, como se nem tivesse acontecido — ignorada até mesmo pela pessoa que mais deveria exaltá-la (eu). Por que outras pessoas dariam crédito a uma conquista cujo certificado nem me dei ao trabalho de imprimir e botar na parede, à frente do qual eu tiraria fotos, sorriria, mostraria com orgulho? Eu posso colocar a culpa em muitas coisas da vida que foram entrando no meu caminho, mas é inegável que muitas pessoas conseguem equilibrar uma quantidade imensurável de pratos no malabarismo da vida sem derrubar nenhum, e eu mal tinha um jogo de louças para uma família de duas pessoas e um cachorro e já achava difícil demais mantê-lo no ar.
Queria ter feito mais. Queria ter mostrado com mais vigor o quanto valorizei (e valorizo) essa conquista. Ao mesmo tempo, algo dentro de mim quase me faz querer selecionar esse texto inteiro e desaparecer com ele por algum tipo de vergonha que eu não sei definir. Quem sabe essa seja uma característica infeliz da minha personalidade que me faz querer ser um pouco invisível — contra a qual tenho de lutar constantemente para continuar nas redes sociais, fazendo vídeos, até escrevendo newsletters. Não é por isso que escritores buscam a palavra escrita, ao invés da falada?, por não sermos capazes de transmitir de outra forma o que temos aqui dentro?
A grande questão deste texto é que vencer um prêmio e fazer nada com isso é muito parecido com não vencer um prêmio. Só aos poucos tenho conseguido trabalhar esse tipo de coisa, aparecer nas redes sociais e insistir nisso: se uma pessoa me segue, deve estar preparada para ouvir falar de livros, sobre os meus livros e as minhas conquistas; se não, seguiria outra pessoa, né? E se não se interessar, é só deixar de seguir. Por que essa vergonha de se assumir?
Isso tem muito a ver, é claro, com a dificuldade que é se assumir escritor no Brasil. Acho que já falei sobre isso antes e, se não, falarei. Fato é que não é tarefa fácil dizer que se é escritor; passei a maior parte da minha vida colocando essa informação no final do meu currículo, e naturalmente um prêmio literário estaria lá, como uma nota de rodapé.
Talvez esteja na hora de eu colocar o prêmio em letras grandes, no começo (com parcimônia, é claro; eu sou designer, não um monstro), lutar contra a vontade de apagar esse texto e admitir com orgulho o fato de que sou escritor e que esse prêmio é um reconhecimento que quero ostentar. Poxa, eu ganhei um prêmio!
É hora de imprimir aquele certificado e pendurar na parede.
Este texto foi inspirado pelo excelente relato do sobre vencer e perder prêmios literários, que por sua vez foi uma recomendação nas newsletters da , e . É difícil não se inspirar com tanta coisa boa aqui no Substack!
Fabio, acho que você ficou com receio de ser julgado por se orgulhar. A gente tem uma cultura besta de que não pode se orgulhar. Mas nada nessa carreira e fácil, então pode sim, e deve. Taca lá na capa de todos os seus livros sim, é uma conquista sua!
Metas para o ano de 2024:
- não esquecer que ser escritor é parte de quem tu é;
- pendurar, de fato, o prêmio na parede - quem sabe sirva de inspiração para os próximos livros e prêmios e projetos...