Eu definitivamente não fui feito para fazer cálculos.
Me pergunto o que os editores têm na cabeça ao colocar sequer um número em algarismos, não por extenso, em um edital. Tudo bem, eu sei que editais são documentos oficiais que necessitam de precisão cirúrgica, de regras claras e especificações muito bem definidas para que não haja brechas que potenciais autores usem a seu favor contra a vontade de quem os criou. Só que escritores como eu — bem, pessoas como eu — não foram feitas para fazer cálculos, para lidar com números. Poxa, tem um motivo pelo qual me formei em comunicação, não em engenharia.
18 DE MAIO DE 2023
A dúvida ainda existia: escrevia ou não um conto? Não era a primeira vez em que eu me via nessa situação, e certamente não será a última. Na última ocasião, desisti a poucos metros do final, nadando a braçadas quase preguiçosas como se nem estivesse tentando chegar à praia.
Estou falando, é claro, da Revista Suprassuma.
Ah, a Editora Suma! Admiro a editora desde que ela era Suma de Letras, antes de se tornar um imperativo que sugere algo voltado à esfera da ficção científica ou de um drama familiar. A minha intenção nunca foi sumir, foi aparecer: no fundo, no fundo, fico pensando se a oportunidade de publicar em uma revista de uma grande editora não seria um abrir de portas do mercado editorial. Ou, se não um abrir de portas, pelo menos um abrir daquela portinhola pela qual vemos as cartas e revistas sendo colocadas para dentro nos filmes americanos. Pelo menos seria o suficiente para eu mostrar que estava lá, quem sabe colocar a mão para dentro e dar um alô silencioso — seria uma oportunidade!
18 do 5, cá estão os números outra vez. Dezoito de maio foi o dia em que o sonho começou, o dia em que abri o edital da Suprassuma e meus olhos brilharam com a possibilidade de escrever um conto, submetê-lo à apreciação da revista — ser aceito para publicação, aclamado pelo público leitor, convidado à publicação tradicional, tornado best-seller, endeusado pelos bookstans, viralizado no TikTok. Não custa sonhar grande.
Entre 6 mil e 30 mil.
25 DE MAIO DE 2023
Em uma conversa com uma amiga, o número de palavras virou piada. Eu disse a ela que para inscrever o conto na revista o conto deveria ter entre 6 e 30 mil palavras. Fiz piada: 6 MIL palavras, não 6 palavras. Até arrisquei um microconto de 6 palavras:
Ontem, sol, mas chuva sem você.
Inspirado pelo meu êxito com seis palavras e engrandecido pelo meu amplo conhecimento em concursos literários e leitura de editais, decidi que, sim, eu ia escrever um conto para a Suprassuma. O que me impedia, afinal? Eu tinha a ideia. Eu tinha o tempo. Eu tinha a vontade, a história, as piadas! para o conto. Era para ser uma história de comédia.
Virou tragédia.
19 DE JUNHO DE 2023
Acordada de sua sesta, minha esposa ouviu da minha boca as malfadadas palavras que eu disse com todas as letras, um sorriso mesquinho no rosto de quem tem certeza de estar certo, os ombros altos e orgulhosos:
“Já passei do mínimo de palavras. Já tenho mais de seis mil.”
Ela sorriu em retorno, um pouco assoberbada pela minha expressão tão precocemente triunfante. “Parabéns”, ela deve ter dito, e eu em minha presunção levantei da cama sobre a qual deitara apenas para dar a notícia e voltei ao computador, digitando furiosamente no teclado que faz quase mais barulho do que uma máquina de escrever. Imerso em uma espiral de sonhos e pensamentos que me colocavam já como novo autor da Suma, eu decidira o título da história, e não poderia ser mais irônico.
São números.
“1799, 1800” é o título do conto. Dois turistas espaciais não recebem o soro do sono criogênico e ficam com a promessa de dois meses acordados em uma viagem da Terra até Marte. Apavorados com a perspectiva, eles comunicam a empresa de turismo e descobrem que, se mais de 1% dos passageiros estiver acordado, a companhia de viagem interespacial se responsabilizaria por reativar os sistemas da nave e botar os dois para dormir.
Cálculos, cálculos. Na minha perdição, calculei 1% de 1800, o número de passageiros na cabine da nave. “18, é claro”, pensei, mas usei a calculadora para ter certeza. Eu só não calculei a minha decepção quando minhas virtudes matemáticas se voltariam contra mim.
30 DE JUNHO DE 2023
Eu fiquei doente.
“Felizmente eu fiquei acordado até mais tarde na quarta pra terminar o conto”, eu disse, pálido e fraco, para minha esposa, que me respondeu palavras de conforto e motivação. É verdade, eu ficara até tarde escrevendo, e é verdade que aquelas últimas 1308 palavras não ficaram exatamente como eu queria, mas o conto estava pronto. Mesmo que fosse necessário reescrever o final depois — na fase da edição, porque eu já estava aprovado para a revista, na minha cabeça —, estava escrito. Era só enviar.
Na sexta-feira fiquei doente, mas o conto estava pronto. Ultrapassei a virose (ou seja lá o que fosse) com coragem e determinação. “O conto está pronto”, o pensamento me confortava e motivava para vencer a doença. No sábado, um dia antes do final do prazo para inscrever o conto, eu estaria bem o bastante para enviar o conto e alçar voo no mercado editorial como autor publicado por uma grande editora tradicional.
1º DE JULHO DE 2023, três dias atrás
Sentei-me no sofá, ainda de pernas bambas, braços trêmulos, dedos incertos para pressionar as teclas do computador, mas a mente ágil, aguda de um mestre das palavras pronto para vencer o último obstáculo: o formulário de inscrição.
Eu me dou bem com formulários. Eu me dou bem com editais.
Contente, reabri o edital, só por via das dúvidas. Reli a página que ficara aberta por quase dois meses — o tempo de vigília dos meus personagens! — na lista de abas do navegador do meu celular como um lembrete para escrever e inscrever o conto. Passei os olhos por aquelas linhas marotas e estaquei.
Na garganta, uma gargalhada tropeçou em um soluço.
“Entre 6 mil e 30 mil CARACTERES. 6 mil CARACTERES, não palavras.”
Em um flash, retornei para o dia em que eu havia passado do mínimo, das supostas 6 mil palavras. Com 10.085 palavras e 59.104 caracteres com espaços de conto finalizado, o meu mínimo já tinha superado o máximo previsto no edital. O conto ficou com o DOBRO do máximo.
3 DE JULHO DE 2023
Escrevo estas palavras sob o apoio incondicional de minha esposa e minha mãe, tão fundamentais em momentos de crise, em situações tão trágicas quanto as que me acompanharam ao longo destes últimos dias.
Ainda assim, elas não entendem de todo a extensão de minha decepção, a profundidade da ferida. Elas veem o meu sorriso e ouvem o meu “eu estou bem”, mas não é assim tão fácil. Algum tempo passará antes de eu me sentir verdadeiramente curado, mas a cicatriz não irá embora.
Como pude ser tão cego? Como pude confiar tão ignorantemente no meu discernimento a ponto de passar por aquele edital tantas vezes e não ver a fatal palavra “caracteres” rindo da minha cara a cada nova linha vencida no arquivo do Word? Serei novamente o autor que já fui, o escritor que colocava nas pontas dos dedos uma inspiração tão pura depois de sangrar estes 29.104 caracteres em excesso e de encarar o formulário de inscrição, incapaz, impotente, sabendo que seria infrutífero, inútil inscrever o texto como estava?
Seria eu capaz de enviar metade do texto, esperando que a Suma se apaixonasse pela história e decidisse abrir uma exceção para incluir os 29.104 caracteres adicionais na revista? Poderia eu me encarar no espelho depois de cortar o conto indiscriminadamente como um subterfúgio para sobrepujar a minha vergonha?
Não. Jamais.
Infeliz ou felizmente, eu tenho muito respeito por editais.
Se você é da Editora Suma ou tem alguma ligação com ela, espero que tenha gostado do texto: é só me chamar no fabiobrust@hotmail.com que eu tenho pelo menos um conto de ficção científica pronto para publicação, hein!
Rindo com respeito